Contraste Maldito

Existem certas coisas que acontecem conosco que servem como aprendizado.

Digo isso em questão de uma situação estranha que me aconteceu.

Estava de plantão e fui acionado pela emergência. Tomografia de abdome com contraste.

Sem problema! Pensei. São tantas que hoje em dia é até normal.

Depois de um tempo aguardando, um enfermeiro trouxe a paciente para a tal tomografia.

85 anos. Visualizei em seu pedido.

Por favor, deite-se aqui que vou posicioná-la. Disse à senhora que parecia indiferente. Nem sequer olhava-nos, mas tudo bem. Não dei importância ao caso.

Quando estava posicionando-a, explicava qual o proceder para esse tipo de exame, mas aquela senhora parecia uma estátua. Não falava, nem se queixava (o que é bem normal em se tratando de idosos em hospitais, mas enfim).

Com muito custo consegui fazê-la responder um tudo bem, quando informei que, ao iniciar a fase com o contraste ela sentiria um calor pelo corpo todo. Isso é normal. Algumas pessoas inclusive se queixam de um calor bem intenso, outras de não sentir calor algum. Isso varia realmente.

Após posicioná-la deitada com os braços sobre sua cabeça, dirigi-me à sala de comando e iniciei o exame.

Fiz os primeiros cortes sem contraste.

Voltei à sala onde estava a senhora. Orientei novamente.

Agora vou injetar o contraste, tudo bem?

Ela permanecia muda.

Caso a senhora sinta algum enjoo ou sinta desconforto, pode falar que eu estou ouvindo do outro lado da sala, ok?

Ela apenas olhou-me de canto dos olhos e sussurrou algo que eu esperava que fosse um tudo bem novamente.

Iniciei a infusão. Verifiquei a bomba se estava tudo certo. Voltei à sala de comando. Iniciei a sessão.

Nossa. Está estranho isso. Parece que tem pouco contraste. Pensava comigo enquanto assistia ao aparelho fazendo os cortes.

Pronto. Pensei. Hora de retirar a senhora de lá.

Chego à sala de exames, percebo que a senhora continuava imóvel.

Ela é estranha. Comecei a pensar.

Quando vou retirar o aceso do braço da mulher, percebo que está molhado e meio grudento.

Ah não! Salta a minha mente de imediato.

Recolho a mesa, e ela volta seus braços para baixo e a ajudo a se sentar. Ao olhar em seus cabelos, veio-me o pensamento. Ah, então foi por isso!

O contraste havia extravasado. Não fora injetado por completo.

Resultado: a senhora estava com o braço e a cabeça e cabelos encharcados de contraste. E aquilo é muito grudento. Olhei o aparelho e havia boa parte também espalhado na mesa e no chão.

E em nenhum momento ela se queixou do liquido escorrendo pelo seu corpo e melando tudo.

Fui ao banheiro, molhei um pedaço de pano e tentei limpar seus cabelos, mesmo sabendo que nada adiantaria. Somente um banho resolveria aquele problema.

O enfermeiro e eu ficamos chocados com a senhora não esboçar reação alguma àquilo tudo. Parecia até que estava acostumada ao fato.

Indignado, voltei-me para a senhora e perguntei. Porque a senhora não falou que estava se molhando? Eu teria parado o exame e dado um jeito!

Ela apenas elevou seus olhos até os meus e depois voltou a olhar para o chão.

Ela realmente é estranha. Conclui.

Imprimi seu exame e levei ao médio pensando. Espero que consiga laudar!

A senhora voltou à emergência e não soube mais seu paradeiro. Espero que tenha ido se lavar antes que aquele contraste maldito secasse, pois ai sim ficaria imaginando quão difícil seria para ela se livrar dele.

Andei pelo hospital à procura do pessoal da limpeza antes que aquele contraste no chão também secasse.

O enfermeiro? Começou a rir ironicamente e se despediu de mim dizendo:

Até a próxima!


Fonte da imagem: radiopaedia.org